Outras Literaturas
Ano passado tive a alegria de redigir o prefácio do livro Os mapas sinalizam ilhas submersas, de Franck Santos. Abaixo, segue o texto.
Um roteiro de amor e de arquipélagos
Sou
todo amor no corpo
[...]
Destilo
amor na epiderme
Franck Santos
Em Os mapas sinalizam ilhas submersas, de
Franck Santos, há lugares distantes, seres imaginados, labirintos: um tratado marítimo
que aponta para o amor como título, como tema, e cujos desdobramentos são quase
sempre dados pela solidão e pela ausência. Não uma lacuna ácida, mas triste, feito
uma chuva que anuncia dos céus alguma decepção:
“Por me entender, me entendo triste,
Um filete de água escorre na noite
Tudo que não existia agora sou eu.”
Estamos diante de um
amor recordado pela insônia, pela dor, numa ponte que expressa a travessia da
saudade, flutuando sobre um rio indiferente. Há, com frequência, um muso distante,
que espera, à espreita, o chamado do eu e que ouve suas reflexões-marulhos,
como em “Se eu fumasse...”. Não é um amor idealizado ou de textura platônica,
mas vivenciado e por isso sôfrego, porque interrompido, remoto: “A solidão entra
pelas janelas e nossos corpos são paisagens cortando o dia / somos belezas
apagadas”.
A memória, a
melancolia e a relação com a cidade, inventada mas também factual nos sentidos
que nos tocam, são outros temas que recobrem o horizonte deste livro. A
construção das imagens, formadas por um arsenal marinho, com descrições
minuciosas, leves e bem trabalhadas, montam uma sinestesia que nos aproxima de
elementos fundamentais como a Terra e a Água (as duas partes que subdividem o
volume), projetando o antigo, aquele tempo imemorial que nos fascina e desloca,
conduzindo a uma origem profunda, de água salgada, uterina.
A marca contemporânea do autor aparece nos corais-poemas contando-nos
sobre desejos cotidianos: um sorvete, uma música, uma companhia. São versos que
nos fazem navegar pelas muitas águas que ofertam, cravadas de languidez e de encanto,
como em “Quando as petúnias florescem”.
O eu nos apresenta
ainda um pequeno bestiário em que pássaros, cavalos, cães e outros animais
compõem figuras que nos ensinam a mergulhar nos oceanos de contemplação e
vivência fragmentados nessas linhas em que o azul predomina como cor e como
anseio.
Há muito o que ser
esculpido a partir dos versos, ora mais prosaicos, ora mais líricos, deste
manancial, tal como a imagem solar que aparece em Água, contrastando com o
cinza da falta; as figuras-enigmas de Clarice, Sylvia
Plath e Patti Smith, que revestem algumas das narrativas que conhecemos através
dos poemas; hemisférios, atlas e castelos de areia; figurações que nos
trazem um pouco do melhor da alma:
“Nos pés, piões. E as piruetas que não dei.
Pipas e aviões. Levito em sonhos.
E pombos me beijam, ao caminhar.
Resisto às intempéries. Mas trago musgo.
Estátua que sou.
Ave que não serei.”
Esta é uma geografia
que pertence à ordem do corpo, do tempo e do sonho. Um mapeamento como símbolo
da divagação e do sentimento, cuja tonalidade (azul do mar) é também a da incompletude.
É um livro belíssimo,
que germina no mais fundo das algas e do salitre o desenho de um arquipélago
sublime que nos convida a habitá-lo. São ilhas que, nestes momentos de dor e de
caos, mesmo matizadas pelo ancoradouro da ausência, nos devolvem o aprendizado
de amar.
Clarissa Macedo
Página do autor: https://www.facebook.com/franck.santos.39

Confeccionei um texto de Orelha para o Livro Mulheres Incomuns, de Vanessa Teodoro Trajano. Indico a leitura. Abaixo, transcrevo o texto.
De potências e de
textos: a força do inesperado
Mulheres Incomuns nos oferta um desfile de narrativas cujas protagonistas ao
mesmo tempo em que podem ser consideradas banais (o que “contrariaria” o
título) não se dobram ao ordinário do cotidiano, subvertem-no: seja pelo choque
da violência dos diálogos, seja pelo improvável da própria vida, estampado na
cara, nas vísceras e no corpo. O corpo, aliás, é um modus de denúncia estético-política, como em “Roupas”, em que a
personagem não consegue se enquadrar às formas estranhas a que se impõe para
saciar o olhar inquisidor do outro: “Buscava
algo, ainda que não soubesse o que, capaz de colocá-la à prova da unanimidade.”.
A intimidade da
escrita fluida e sem acanho que Vanessa Trajano tece e provoca, acomoda-se à
beleza dos dilaceramentos das personagens e ao abrupto dos desfechos – a
exemplo de “A pura leviana”. Os contos não se prolongam sem o necessário do
espanto, porque driblam a trivialidade. Cada história, assim, parece não se
encerrar – como que num contínuo entre as narrativas do volume e quem as lê –,
mas se estender ao inusual do texto e da palavra, casta e insondável e também pronta
à corrupção da verdade dos sentidos e do entendimento.
Clarissa Macedo.
Página da autora: https://www.facebook.com/vanessa.trajano1
Link para aquisição do livro: http://www.editorapenalux.com.br/autor/MTI1/Vanessa_Trajano
Elaborei o prefácio do livro mais recente de Carvalho Junior: No alto da ladeira de pedra. Uma obra que vale a leitura. Abaixo, transcrevo o texto.
Infâncias e ausências rasgando
o impossível
vida e morte,
fábulas obsoletas.
Carvalho Junior
Quando
comecei a ler No alto da ladeira de pedra,
sob a tarefa de lhe dedicar alguma escrita, o único empecilho foi conseguir me
desgarrar do volume para a confecção de alguns pensamentos. Não é de hoje que
acompanho os escritos do poeta Carvalho Junior. Conheço e aprecio seu livro
anterior, Dança dos Dísticos, e volta
e meia trocamos pelo facebook.
Este
novo compêndio me faz pensar sobre a renovação de um poeta. Em literatura, a
cada livro entra em jogo a diferença do olhar sobre a experiência colhida e a
matéria narrada. Suicídio, que abre o feixe de poemas, justifica minha ponderação,
porque choca, impacta, embeleza, de um modo diferente de sua produção anterior
– e tudo numa tacada só, como se não houvesse tempo para outro fôlego:
matei-me com a
corda que não pulei na infância.
O tempo, aliás,
assim como outros temas que interrogam a humanidade, por sua banalidade e seu
assombro, é tópico para as notas líricas que se abrem a cada verso. O tempo, o
amor e suas definições cruas, a sexualidade como domadora de vazios, e o
próprio vazio aplacado pelo exercício da poética e do silêncio, percorrem as
páginas e as pedras.
Estamos diante de
um livro que mostra, ainda, um poeta atento às vicissitudes do país onde vive
e, principalmente, se quisermos pensar na importância do local, do bairro onde cresceu, da rua onde mora. Tal traço fica
notório quando, através do texto, ficamos diante do rio Itapecuru, da rua
Teixeira Mendes e de todo o Maranhão mapeado pelas tintas do autor; são os
reclames numa urbes que oprime e se
perde entre
o caos, contra a negligência de quem deveria cuidá-la e contra a privatização cultural
e o abandono (Raios X, Sobrevivência).
Mas,
acima de tudo, este é um livro sobre faltas – “para rasgar nas unhas do arame
os calos de sangue dos pés dos meus fantasmas.”. E é por meio da infância que
estas ausências se revelam. São muitos os poemas que recortam o tema – a
exemplo de Paredes da
infância, Sobre o meio-fio – não em
tom de queixume, mas suturando com beleza um pouco de “todos os meus medos de
menino”, concentrando, para mim, os pontos mais belos do volume. É pela
infância que a lira se rasga em carne que habita e existe feito lacuna algum
tipo de utopia humana que talvez almeje, muito sem o saber, retornar à pureza
da meninice, que ainda repousa no colo do poeta e nos mostra que do alto da
ladeira de pedra os espaços são os das possibilidades, e os encontros, mágicos,
como este com uma Cigana:
apressa o passo,
cigana.
urgente preciso
um cigarro de Macondo
para pôr fim a esta
minha solidão
de quase trinta anos.
Clarissa Macedo.
Página do autor: https://www.facebook.com/professorcarvalhojunior
Link para aquisição do livro: http://editorapatua.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=285

A veste do girassol
rompido: uma poesia que vivencia pássaros
Os girassóis
da manhã seguinte /
surgiram
calmos, /
[...]
Abriram as
gavetas do dia
como se
fossem suas pétalas
Markus
Vinícius
Dizem que um amigo é um fio que
nos conduz mansamente por entre longos labirintos[1]. Comigo e Markus é assim. Ao
nos conhecermos, de um modo inusitadíssimo, nos soubemos amigos, porque amigos
se reconhecem, já dizia Vinícius, como um leitor inventivo sabe reconhecer um poema.
Entretanto, não é só de amizade que se constrói este texto que abrirá caminhos;
é de vislumbre e satisfação, porque é isso que me ofertam Os girassóis da manhã seguinte e o canto do pássaro livre, de
Markus Vinícius Borges dos Santos.
Manoel de Barros, em “Sol s. m.”,
nos prepara: “Quem tira a roupa da manhã e acende o mar / Quem
assanha as formigas e os touros / Diz-se que: / se a mulher espiar o seu corpo
num ribeiro florescido de sol, sazona / Estar sol: o que a invenção de um verso
contém”. Estar sol é no que consiste (também) a aventura luminosa do verso. E a
luminosidade de que fala o Sol manoelino, compõe este apanhado de poemas; junto
a ela, uma multidão de pássaros que salmodiam mantras, reviram espelhos e
filosofias, solfejando hinos que cantam a própria condição de ser poeta: “O canto
do pássaro livre surge / no rebento das flores abertas, / exalante germinação
dos ventos / saudando a chegada do poeta. // Todo pássaro quer seu canto /
livre das fórmulas do sol”.
Mas nem só de luz se nutre uma
lírica. Por isso, as sombras também habitam, camufladas, os textos em pauta,
ora em forma de contraponto, ora em moldes de ironia, meditação e apontamentos
sobre o cotidiano: “na arquibancada da vida / ou no centro de todo palco / ou
se dança boba como uma bailarina / ou se vinga sério como um palhaço.”.
De tom leve e psicanalítico (não
apenas pelas referências à psicanálise pós-freudiana), os textos deste livro
abordam temáticas como a infância, o tempo e a obviedade da vida diante da dor,
travestidas pelo sol como sagração e metáfora da existência: tônicas
transfiguradas em lirismo; de um que brota dos pulsos cortados do escritor – porque
escrever é um eterno cortar(se) e remendar(se) de pulsos –, pulsos que, neste
caso, não fazem manar sangue, mas um plasma cor de alvorada.
Amor e morte, temas literários por
excelência, também não deixam de percorrer o
canto do pássaro livre, aparecendo em poemas como “O cavaleiro”: “no Tarô
de seus olhos magros / a morte é apenas uma carta / sempre fora do baralho.”.
Figurações míticas e a presença de
elementos da tradição grega, ressignificados no tempo do autor, porque Markus formata
uma textualidade de seu tempo, formam arranjos que nos remetem a imagéticas imaginativas,
a sertões rarefeitos, a manhãs que nos revigoram para nos instigar. Sobre ser uma
poesia de seu tempo, há nesta leva reflexões sem um teor militante acerca de
questões políticas – como em “Homem Bomba”: “Duas torres gêmeas demolidas / ( o sangue e a saliva )
/ e Hiroshima e Nagasaki / ainda negociando a paz / de seus entulhos” –,
culturais – “e o ato crítico de / destruir o crucifixo / das miragens...” – e sociais.
Não gosto de pensar (mesmo porque não é) este livro de Markus com a roupagem redutora
de um conceito mal formulado sobre o social. Livre da redoma de uma escrita
“sociorrealista”, uma das vantagens que a contemporaneidade trouxe, o que
percebo nos poemas é uma preocupação com o entorno, com as desventuras que uma
cultura de exploração ocasiona a quem nela vive e com os emblemas mal colhidos no
trato com o outro: “esgrimo o sol / na fome quente / dos canaviais... // [...]
sou essa lâmina / que atravessa a carne / crua dos vendavais.”. Talvez isso se
deva ao ofício da psiquiatria, aliado ao imaginário de um poeta de
sensibilidades.
Tudo isso oscilando entre limites: o
do bem e o do mal, o do palpável e o do ficcional, o da vida e o da morte.
*
Em diálogo com a tradição, que se
confunde com vertentes do moderno e do contemporâneo[2], o fato é que neste feixe
de textos ondula coisa nova, paradoxalmente, incorrendo no rememoramento de algo;
um algo que nos cintila o espírito. Alguns escritores aparecem aqui e ali neste
compêndio de Girassóis; Drummond,
Kafka e Manoel de Barros, este principalmente, são exemplos neste contexto. Mas,
é importante frisar, não aparecem para determinar uma filiação tardia ou uma
imitação pouco criativa: são vozes que apenas sopram, sem carregar a gênese dos
poemas, cujas sílabas falam por si mesmas. Ainda neste universo, o cunho
biográfico, sem teorizarmos aqui sobre a forma de presença do autor no texto,
aparece entrecortado, sinuoso, diaspórico: “Essa minha biografia só abre aspas
para o silêncio.”; “Nada além de mim / posterga esse outro / que me
dissolve.”.
Um ponto que também embeleza a obra
referida diz respeito aos desenhos que estão entre alguns textos e que foram
elaborados pelo próprio poeta; são linhas poéticas em forma de traços – alegoria
e metatexto “fantocheando a mímica do sol”.
Em síntese (para que o leitor
percorra o que de fato importa), o girassol que se rompe nessas páginas feitas
de auroras, nessas revoadas de pássaros de variadas asas, que correm num espaço
bem demarcado (o interior da Bahia), mas também universal e simbólico, por isso
mesmo tão real, configura uma cartografia em delírio, feita de trópicos
solares, batizada das vestes do infinito e de uma retórica toda especial: a
retórica de uma íntima (e intacta) natureza.
Clarissa
Macedo
[1] Labirinto:
“É dessa mania / de dar coisas aos nomes / que vem essa outra / de dar nomes às
coisas. // Assim, no meio do que nomeio / revelo no que velo / o novelo do que
não vejo. // Como Teseu / me conduzo por um fio.” Markus Vinícius.
[2] Há momentos em que a forma
dos textos flerta com o concretismo: “O homempalavraestátuapoema, / de Itabira,
recompõe, no vandalismo / das tintas, a grafitagem do verbo / )a anarquia de
sua solidão mineira...”.
Página do autor: https://www.facebook.com/markusvinicius.borges
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